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O laboratório – O que aconteceu com a CEDAE neste ano é um laboratório para o resto do país

Por Ary Girota

O setor de saneamento nacional está em liquidação e o leiloeiro é Paulo Guedes. Além da gigante CEDAE (RJ), estão previstos mais seis leilões nos próximos meses. Dois em Alagoas, dois no Ceará, um em Porto Alegre e mais um bloco da CEDAE no estado do Rio. Além disso, o instrumento do governo para tal feito, o BNDES, deverá iniciar em breve a modelagem de outros cinco: dois na Paraíba, um em Sergipe, um em Rondônia, outro em Minas Gerais.

O que aconteceu com a CEDAE neste ano é um laboratório para o resto do país. O leilão ocorreu em meio a uma disputa de liminares que desautorizaram o poder legislativo do Rio de Janeiro, que por meio do Decreto Legislativo nº 16 de 29 de abril de 2021 havia suspendido a venda da estatal que mesmo assim foi tocada pelo governo federal à revelia, em evidente afronta à separação dos poderes e ao estado de direito.

Três dias antes do leilão, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, decidiu monocrática e autocraticamente suspender preventivamente qualquer decisão judicial que viesse a impedir o leilão.


As controvérsias judiciais ainda persistem, agora reforçadas pelo TCU que, após exame técnico, indicou impedimento da participação da Iguá Saneamento na licitação – ganhadora do Bloco 2 da CEDAE – por infringir o item 13.5 do edital, que veta explicitamente a participação de companhias que tenham alguma ligação com os realizadores da privatização. A Iguá tem entre seus controladores o BNDESPar, subsidiária integral do BNDES, que foi o responsável pelos estudos técnicos que subsidiaram a licitação.

Após manifestação do TCU, o deputado federal Paulo Ramos ingressou com uma Ação Popular na Justiça Federal. Após reconhecimento da robustez jurídica da argumentação, o juiz federal Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias da 5ª Vara Federal do Rio de Janeiro determinou a oitiva do BNDES e do Estado do Rio de Janeiro.

Cabe ressaltar que após a manifestação do magistrado, o presidente Jair Bolsonaro, em discurso na Organização das Nações Unidas, no dia 21 de setembro, disse que a privatização da CEDAE foi um grande avanço na área do saneamento básico.

Um dia antes, o secretário da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro, Niccola Miccione, que está à frente da privatização da CEDAE disse, em entrevista ao Terra: “Contratos muito bem redigidos, às vezes, geram péssimas execuções”.

A afirmação soa como uma confissão de culpa por um processo mal feito, pois a modelagem e a condução do processo estão sendo amplamente questionados na justiça. Miccione ainda ressaltou na entrevista que a demanda dos investidores globais por projetos de saneamento básico seria um fator positivo do ambiente econômico.

Não é de se estranhar o interesse das instituições financeiras citadas pelo secretário, uma vez que dos R$ 22 bilhões arrecadados no leilão, R$ 18 bilhões saíram dos cofres do BNDES. As donas das concessionárias vitoriosas são instituições financeiras, voltadas prioritariamente a gerar rentabilidade para seus acionistas ou cotistas. No caso dos controladores da AEGEA, chama a atenção não apenas a Grua Investimentos, holding controladora das famílias Toledo e Vetorazzo, mas também as presenças do Fundo Soberano de Cingapura (GIC) e do Banco Itaú. A propósito, o que o Itaú, que bateu mais um recorde de lucratividade no primeiro trimestre de 2021, pretende ganhar com o serviço de saneamento na Baixada Fluminense, onde é enorme o déficit deste serviço?

A reposta está, além do vultuoso empréstimo do BNDES, na majoração das tarifas como já podemos vislumbrar a partir do aumento de 9,86% da tarifa de água que entrará em vigor a partir de 1º de novembro, mesma data prevista para a Águas do Rio (AEGEA) tomar posse da receita proveniente dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

Diga-se de passagem, a Aegea manteve durante muito tempo, uma espécie de “infiltrado”, um funcionário de alto escalão como diretor da CEDAE com a finalidade de obter toda a informação previamente ao leilão e acesso aos dados mais importantes e imprescindíveis da Cedae. Tanto é que a referida empresa abocanhou dois blocos do leilão e pretende reduzir a operação assistida de seis para três meses concretizando com a conivência do Estado uma renúncia de receita que gira em torno de R$ 1 bilhão. Como podemos observar, tanto a Aegea quanto a Iguá, grandes vencedoras do leilão, usaram informações privilegiadas e da conivência do Executivo para tornar realidade seus planos de captura da última joia da coroa do estado do Rio, a CEDAE.

A Aegea tem investido pesado em sessões midiáticas, tendo o atual presidente da Águas do Rio afirmado no dia da assinatura do contrato de concessão que promete despoluir a Baía de Guanabara em doze anos. Uma falácia sem tamanho, uma vez que o próprio modelo proposto pelo BNDES possibilita às concessionárias privadas a utilização do Coletor de Tempo Seco, modelo não aplicável a um país tropical como o nosso onde os índices pluviométricos são muito altos. O que vai acontecer é que quando chover forte, o sistema não conseguirá reter o esgoto para tratamento e transbordará caindo direto nas águas da Baía. A Cedae adota atualmente o sistema chamado de separador absoluto, as redes de esgoto se conectam a uma estação de tratamento, o que reduz em 95% a carga orgânica da água. Ou seja, o modelo proposto pelo BNDES é um retrocesso ao saneamento do Estado, visando beneficiar a iniciativa privada que terá que investir muito menos em um coletor de tempo seco do que deveria ter que investir no sistema de separador absoluto.

O argumento do atual governo para a venda da empresa é que o contrato prevê também a universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário até 2033. Tal meta seria cômica se não fosse tão frágil e tragicamente inverídica. Sobre o enorme déficit de saneamento nas áreas de favela e periferia, não há no contrato garantias reais de investimento. Está presente, na verdade, uma diferenciação entre “áreas irregulares elegíveis e não elegíveis” em termos de investimentos, porém não se explicitam os critérios de elegibilidade, deixando ao arbítrio das concessionárias e do gestor público de plantão.

Para se ter noção do problema, para as áreas de favelas do município do Rio de Janeiro foi previsto um investimento de apenas R$ 1,7 bilhão para a ampliação do sistema de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, valor esse que não daria nem para universalizar o sistema na maior comunidade, a Rocinha.

A situação de universalização do abastecimento de água ainda se vê ameaçado pela estiagem e pela captação da água do rio Paraíba do Sul pelo Estado de São Paulo para reforçar o sistema Cantareira. Certamente as regiões mais carentes, que dão menos lucro à iniciativa privada serão as mais afetadas pela crise hidríca.

Como exposto, a privatização da CEDAE além de lesiva à população e aos cofres do Estado do Rio, também coloca em risco a continuidade da CEDAE, que é uma empresa cujo lucro anual gira em torno de R$ 1 bilhão. A própria CEDAE teria capacidade de suprir os investimentos propostos pela modelagem do BNDES em menos tempo e com recursos próprios, graças à sua saúde financeira e à imunidade tributária que possui. O argumento de que a desestatização é essencial para viabilizar os recursos necessários à universalização cai por terra completamente. Por que o BNDES não disponibiliza seus recursos para financiar a universalização dos serviços pelas operadoras estaduais e municipais?

A modelagem parece ter sido arquitetada com o objetivo único de configurar um modelo extremamente atrativo e rentável para o privado, como disse o secretário: “Contratos muito bem redigidos, às vezes, geram péssimas execuções”. Numa clara declaração de favorecimento aos executores, as concessionárias.

Qual seria o motivo de tal favorecimento dos entes privados por parte do Estado? O dinheiro liberado em forma de outorga será investido nos planos de perpetuação no poder do atual governo federal e estadual, uma vez que o dinheiro recebido não está atrelado a nenhum projeto de melhoria do saneamento básico.

A farra dos cheques do atual governador Cláudio Castro na verdade seria a barganha política de apoio às candidaturas de 2022. Afinal o atual governador só chegou ao poder porque o governador eleito, Wilson Witzel, sofreu impeachment no mesmo dia do leilão da estatal, 30 de abril, quando, dias depois, Cláudio Castro assume de forma efetiva o governo, mesmo sendo acusado de receber R$ 100 mil em propina. Se Witzel se afastou de Bolsonaro por almejar a cadeira da Presidência da República, Castro se aproximou do presidente ao revelar que seu palanque seria o de Bolsonaro em 2022.

Cabe ressaltar que foi apontado na CPI da Covid fortes indícios de que gabinetes paralelos estão gerindo recursos públicos de acordo com interesses de grupos econômicos, indicando um elo com a família Bolsonaro e o BNDES. O senador Flávio Bolsonaro inclusive foi citado na CPI como responsável por abrir as portas do BNDES à Precisa Medicamentos, empresa acusada de vender vacinas superfaturadas. O mesmo senador, eleito pelo Rio de Janeiro, foi acusado de pressionar parlamentares para que votassem contra o Decreto Legislativo que suspendeu o leilão da CEDAE. O mesmo senador votou contra a privatização da empresa em 2017. O que o faria mudar radicalmente de posição?

Lembramos que o atual presidente do BNDES, Gustavo Montezano, é amigo de infância do senador Flávio Bolsonaro e também é ex-sócio do Paulo Guedes no BTG Pactual. O BNDES está sendo o responsável por conduzir as privatizações do setor de saneamento do país e a sanha privatista do atual governo, que mira agora a Eletrobras e os Correios, deverá seguir o mesmo padrão, buscando atrair instituições financeiras interessadas em especular com o fundo público e os direitos da população para se perpetuar no poder em 2022.

Artigo Publicado originalmente na edição da Le Monde Diplomatique Brasil de outubro de 2021