sindicato dos trabalhadores nas indústrias da purificação e distribuição de água e em serviços de esgotos de niterói e região

O dinheiro da Previdência canadense está financiando as privatizações do governo Bolsonaro

Fundos canadenses compraram a Iguá Saneamento. O endosso é disfarçado de apoio a projetos sustentáveis e soluções ‘cleantech’

Mais de 900 milhões de dólares do dinheiro dos fundos de pensão públicos do Canadá estão sendo usados para privatizar água e saneamento no Rio de Janeiro. As aposentadorias dos trabalhadores canadenses irão lucrar diretamente toda vez que os brasileiros, que já sofrem com o acesso frágil e desigual à água limpa e ao saneamento básico, pagarem sua conta de água.

Fundos canadenses compraram a Iguá Saneamento, uma empresa brasileira de serviços de água e esgoto que atualmente opera 18 contratos de concessão de longo prazo em cinco estados brasileiros, prestando serviços para mais de seis milhões de pessoas. A Iguá buscou este capital para que pudesse participar da privatização e leilão (legalmente contestada) da empresa pública de água do estado do Rio, ocorrida em 30 de abril.

A Internacional de Serviços Públicos (ISP) – federação sindical global que representa trabalhadores que prestam serviços públicos vitais em 163 países – está trabalhando ativamente com afiliadas no Brasil e no Canadá para combater esta privatização oportunista e altamente politizada.

A privatização aprofunda o acesso já desigual a serviços essenciais, leva à deterioração da qualidade dos serviços e da infraestrutura, encarece o serviço e aumenta as violações dos direitos dos trabalhadores.

A água é essencial para a sobrevivência. Isto se tornou ainda mais claro durante a pandemia. No mundo inteiro, muitas das cidades que escolheram a vender suas empresas públicas de água ao setor privado passaram, desde então, por um processo de ‘remunicipalização’ – trazendo de volta os serviços de água ao controle democrático.

Por que motivo, então, esta privatização está acontecendo exatamente agora, neste momento em que o Brasil está sofrendo com seus maiores índices de infecção e de mortes pela COVID-19?

E qual o sentido de os fundos de pensão do Canadá investir em um projeto tão controverso e vergonhoso, durante a fase mais intensa de uma pandemia global?

O sistema de água do Rio arrecada mais de um bilhão de reais por ano. A Cedae é a maior e mais lucrativa empresa pública de água do Brasil. Este “lucro” é utilizado para subsidiar os serviços de água e esgoto nas localidades onde os custos de fornecimento são mais altos, manter e expandir o sistema e até para subsidiar outros serviços públicos. O ex-presidente da Cedae, Wagner Victer, disse em entrevista recente que, se a Cedae permanecesse uma empresa pública, ela ganharia cerca do equivalente a R$20 bilhões nos próximos 17 anos. O potencial de lucro é tão atraente que 12 empresas diferentes organizaram mais de 2000 visitas técnicas às instalações da Cedae, no momento mais perigoso no epicentro da pandemia global. Tudo isto enquanto milhões de pessoas ao redor do mundo estavam sofrendo toques de recolher e trabalhando ativamente para conter a propagação da COVID 19.

Como ocorre no setor de energia, a população se torna ‘refém’: ou seja, as pessoas não têm o direito de escolher quem fornece o serviço. Sendo assim, o lucro está garantido. Independentemente do preço, a população é obrigada a pagar. Ou os serviços serão cortados.

A Câmara de Comércio do Canadá em São Paulo tem promovido oportunidades no setor de água e saneamento no Brasil – um mercado promissor para as empresas canadenses. Como sempre, os canadenses, que querem preservar uma autoimagem amistosa e progressista, estão dando um novo impulso à privatização do sistema público de água do Brasil disfarçado de apoio a projetos sustentáveis e soluções ‘cleantech’ (de tecnologia limpa).

As organizações afiliadas ao ISP têm se posicionado contra estes investimentos. Numa carta enviada ao fundo, o tesoureiro do sindicato nacional de funcionários públicos (NUPGE) Bert Blundon, a entidade argumentou que, ao se envolver na privatização dos serviços de água e esgoto, o Plano de Pensões do Canadá “está arriscando tanto sua própria reputação, quanto a do país como um todo”.

E completam: “Embora a privatização de qualquer serviço público constitua um problema, a privatização de um serviço de fornecimento de algo tão essencial como a água estará particularmente susceptível de atrair um escrutínio minucioso e, os problemas, de obterem publicidade”.

Indo além, o presidente do sindicato canadense de servidores públicos (CUPE), Mark Hancock, destacou, em carta pública enviada ao fundo, que “os serviços privados de água e esgoto têm um péssimo histórico. Já está bem documentado que a privatização da água vem acompanhada de taxas excessivamente elevadas, de acesso em queda, de qualidade decrescente e de cortes tanto nos serviços, como nos empregos”. Tudo isso irá criar problemas para a população brasileira, que será obrigada a arcar com as consequências diretas e, em última instância, para o fundo também.

Cada passo da privatização da CEDAE gera suspeitas e tem sido contestado.

O leilão da Cedae levou anos para ser realizado. Esse tipo de ação tão controversa quase sempre precisa de algum tipo de ‘choque’ externo que gere um momento político oportuno. A pandemia está sendo usada para reduzir o debate público, a participação e a mobilização da resistência à proposta.

A lei federal original que permitiu a privatização, em 2016, foi autoritária e até inconstitucional. Ela tornou a privatização da Cedae condicionada a um empréstimo de 3,5 bilhões de reais ao Rio. O Rio está com uma enorme dívida, devendo mais de 4,5 bilhões ao governo federal. Em parte, porque as Olimpíadas custaram 13 bilhões de dólares, dinheiro que foi usado para construir instalações olímpicas, agora abandonadas, e para expulsar comunidades pobres. E, em parte, devido à redução da receita da Petrobras, que sofreu ataques sistemáticos, danos provocados pela farsa de Lava Jato e continua a ser atacada e desmantelada.

Historicamente, o governo federal tem promovido um socorro. Mas o Plano de Recuperação Fiscal de 2016, que deu ao estado o prazo de até janeiro de 2021 para pagar sua dívida, incluiu a condição obrigatória de privatizar a Cedae e de adotar medidas rigorosas de austeridade. Assim, a razão original por trás da Assembleia Legislativa do Estado do Rio ter modificado sua Constituição, em 2016, foi para permitir a privatização da Cedae, para gerar fundos para pagar a dívida estadual.

Além disso, a Cedae foi incluída em um programa federal de assistência emergencial para entidades públicas que estavam muito endividadas. O resultado disso foi uma recomendação para privatizar. Mas a Cedae nunca esteve endividada e não deveria ter sido incluída naquele programa. A retórica usual sobre universalização, melhoria dos serviços de água e ganhos econômicos para a cidade do Rio só veio depois.

Esta privatização foi coordenada pelo governo Bolsonaro por seu ministro da Economia, Paulo Guedes e seus aliados em nível estadual e municipal, no Rio. Mas a privatização da Cedae não tinha o apoio do público no Rio. Atualmente, 6% da água do Rio é operada por empresas privadas, e os moradores destas regiões pagam até 70% a mais por sua água do que aqueles que são atendidos pela Cedae .

Além da pandemia, um choque adicional promoveu uma oportunidade de adiantar a data do leilão: uma crise no fornecimento de água, ocorrida em janeiro de 2021. Depois de muitas pessoas terem chegados aos hospitais com sintomas semelhantes no sistema digestivo, um tipo específico de algas que estava causando alterações na cor, no odor e no sabor da água, foi identificado. Essa crise danificou a imagem da Cedae e contribuiu para que o leilão fosse antecipado, precisamente no momento em que a ampla estratégia nacional de privatização estava enfraquecendo e necessitava desesperadamente de uma vitória.

O ex-governador do Rio, Wilson Witzel, negou suspeitas de que seu governo havia se envolvido em sabotagem, mas ao mesmo tempo confirmou que “suspeito que houve sabotagem, exatamente para minar a gestão eficiente da CEDAE que está em andamento, enquanto se prepara para o leilão”. Uma investigação policial sobre as alegações de sabotagem foi aberta e, rapidamente encerrada devido a insuficiência de provas.

O Estado de direito foi usado como cobertura simbólica para uma política já decidida – apesar das decisões legais, públicas e políticas que contrariaram esta privatização

Previsibilidade e segurança jurídica
Além dos constantes desafios legais desde a modificação da Constituição do Rio para permitir a privatização da Cedae, ocorrem na véspera do leilão dois eventos que poderiam tê-lo derrubado. Alguns dias antes do evento, um juiz local o suspendeu porque a obrigação legal de negociar com os sindicatos locais, nos casos em que houvesse demissões em massa, havia sido ignorada. O presidente do STF Luiz Fux, entretanto, suspendeu a liminar em tempo recorde, garantindo que o leilão prosseguiria conforme previsto. A decisão de Fux também impediu que tribunais de primeira e segunda instância impedissem o leilão.

Às vésperas do leilão, também chegou ao ápice uma crise política. Frustrados com a exigência federal de que a Cedae fosse privatizada como condição para o alívio da dívida federal de emergência, os legisladores estaduais do Rio debateram uma proposta para inverter esta ordem. Para fazer a privatização depender da renovação de um acordo com o governo federal sobre a dívida estadual.

A pressão foi intensa. Parlamentares relataram ter recebido ligações do governador em exercício, de outros legisladores estaduais e até mesmo de políticos federais, incluindo o filho de Bolsonaro. Houve grandes, diversas e barulhentas manifestações dentro e fora da assembleia.

Apesar da pressão e das ameaças, os legisladores do Rio votaram de 35 a 24 (com duas abstenções) para adiar o leilão até que um acordo pudesse ser alcançado com o governo federal. Mas a vitória durou apenas algumas horas. O governador em exercício declarou publicamente que o leilão iria prosseguir e que a votação seria ignorada. Ele recebeu cobertura legal de um juiz de apelação que havia, anteriormente, absolvido Bolsonaro por seus comentários racistas e homofóbicos feitos em público.

Apesar da insegurança jurídica e da profunda oposição pública, congregando diversos sindicatos e movimentos sociais brasileiros, o leilão prosseguiu como previsto, no dia 30 de abril.

Ao BNDES do Brasil foi dado a responsabilidade de garantir que o maior número possível de privatizações ocorresse, o mais rápido possível, durante o mandato de Bolsonaro. O diretor de Infraestrutura, Concessões e parcerias público-privadas do banco, Fábio Abrahão, explicou à mídia que uma “sala de guerra” está funcionando dentro do banco, há meses. A equipe de especialistas de nível estadual e nacional é liderada pela Procuradoria-Geral e foi montada especificamente para lidar com os desafios legais para o avanço das privatizações. Quando questionado sobre a possibilidade de que decisões legais ou políticas pudessem adiar o leilão, Abrahão afirmou que “nós não trabalhamos com atrasos”. A clareza e a arrogância dessa afirmação deixa muito claro quantos interesses estão em jogo (todos eles privados) e quão importante e urgente é este momento político para aqueles empenhados em vender a infraestrutura pública.

Mesmo com todos os riscos que poderiam ter interrompido o leilão, o clima para os investidores era de “euforia e mobilização”, de acordo com fontes do mercado – a maioria dos quais falava à mídia local sob condição de anonimato.

A Cedae atualmente atende a mais de 30 municípios, com mais de 13 milhões de pessoas. Mas não é toda a Cedae que está sendo privatizada. Apenas as partes que são lucrativas (distribuição e tratamento de esgoto) estão sendo entregues. As partes do serviço que são mais onerosas (captação e tratamento de água limpa) continuarão sob a responsabilidade do Estado, mas, agora sem os subsídios horizontais internos, que vinham de outras partes da empresa.

A Cedae foi dividida em quatro blocos (e lucrativos) para serem vendidos separadamente. O preço mínimo era de 10,6 bilhões de reais. Para os 3 dos 4 blocos, foi ofertado mais do que dobro deste valor. O fato que as empresas que participarem no leilão pagaram mais do dobro do preço mínimo e depois concordaram em contribuir com mais de 30 bilhões de reais para a infraestrutura ambiental do Rio indica o quanto isto será rentável para elas.

O quarto bloco não foi vendido. Apesar de ter o preço mais baixo, foi o menos rentável. A Iguá (empresa agora propriedade dos canadenses) ganhou um dos blocos. O leilão não aceitou nenhum outro lance porque a primeira oferta da Iguá foi de 130% do preço pedido.

E, claramente, esta luta se estende para muito além das fronteiras do Rio. O diretor do fundo da pensão do Canada para a América Latina, Rodolfo Spielman, confirma que o setor de saneamento tem muito potencial para crescer após a sanção do novo marco legal, que permite uma maior participação do capital privado. E o diretor de infraestrutura, Ricardo Szlejf, estima que a Iguá participará de “muitas, senão de todas as concessões e privatizações nos próximos anos”. Adicionalmente, o fundo também está de olho na geração e a transmissão de energia. Atualmente, tem cerca de 27 bilhões de reais em investimentos no Brasil. É neste contexto que a FNU esta realizando uma campanha nacional criativa e abrangente contra a privatização da Eletrobras.

Essa estratégia de privatização rápida, antidemocrática e autoritária não está dando sinais de desaceleração. Uma semana após o leilão da Cedae, foi votada no Rio Grande do Sul uma emenda constitucional que acaba com a exigência de um plebiscito em casos de grandes privatizações. A emenda constitucional foi aprovada por uma margem de um voto, eliminando o controle democrático obrigatório sobre esse tipo de decisão. Foi rapidamente revelado que a contagem dos votos estava errada. O lado vencedor contou o voto de um legislador que nem mesmo estava conectado no momento da votação. A decisão agora está sendo contestada.

A confiança e a ousadia com que a extrema-direita está atacando deixa claro que as “regras do jogo” foram abandonadas. Nossa luta contra a expansão do capital com base na especulação, predação, fraude e roubo da riqueza socialmente produzida tem que ser ampliada e consolidada. Nossas estratégias têm que ser mais ousadas. Nós temos aliados, em todos os lugares. Aliados que apoiam, que participam e que organizam ações em seus locais de trabalho, nas ruas, nas legislaturas, nos tribunais e na mídia. Somente quando nos organizamos com criatividade e ousadia, em todos esses espaços, e quando trabalharmos em conjunto, é que podemos garantir que a expansão de serviços públicos de qualidade, administrados democraticamente e acessíveis a todos

FONTE: EUAN GIBB – Carta Capital