A pesquisa da plataforma de empregos Indeed, em parceria com o Instituto Guetto, entrevistou mais de 200 profissionais negros e constatou que 47,8% dos entrevistados não têm a sensação de pertencimento nas empresas em que trabalham
De acordo com pesquisa realizada pela plataforma de empregos Indeed, em parceria com o Instituto Guetto, 47,8% dos profissionais negros não têm a sensação de pertencimento nas empresas em que trabalham. Além disso, 60% dos profissionais entrevistados sentiram discriminação racial no ambiente de trabalho e quase 47% afirmaram ter presenciado cenas de discriminação.
A pesquisa contou com a participação de 245 profissionais negros no Brasil. Como explica o presidente do Instituto Guetto, Vitor Del Rey, as respostas foram colhidas por meio de um painel on-line em março deste ano e inclui estagiários, trainees e efetivos de empresas de diversos portes.
O presidente do instituto destaca que a pesquisa mostra, mesmo depois da ascensão das discussões antirracistas na mídia e em grandes empresas em 2020, que ainda há muito o que ser feito quando se fala de diversidade dentro do ambiente corporativo. Em maio do ano passado, a morte do americano George Floyd gerou uma onda de protestos mundo afora e incitou o debate sobre as diferentes formas de racismo na sociedade.
“Os protestos do Vidas Negras Importam (Black Lives Matter), obviamente, tomaram proporção mundial e é claro que traz um sentimento de indignação com o racismo”, pondera Vitor. “Isso pode refletir em diversas áreas, inclusive no ambiente de trabalho, mas é preciso tomar cuidado para que essa indignação não fique apenas num discurso e isso se transforme também em ações”.
O preconceito, muitas vezes, vem disfarçado de piada, surge em rodas de conversa em tom de brincadeira (o chamado racismo recreativo) ou até mesmo em olhares e diferenças de tratamento, segundo Del Rey. “O RH precisa estar atento porque nem todos vão denunciar uma atitude de discriminação, mas coibir essas práticas e desenvolver ações no sentido de aumentar o senso de pertencimento desses profissionais vai fazer toda a diferença até mesmo na produtividade”, também é preciso criar um ambiente de seguranca instituicional para que o colaborador possa denunciar práticas racista nem que seja de forma anonima, Isso fortalece a posicao da empresa de nao tolerar tais práticas”, afirma.
Os entrevistados foram perguntados sobre quais práticas podem ajudar na educação e disseminação de informação dentro das empresas para criar um ambiente mais aberto à inclusão e pertencimento de pessoas negras. 68% dos entrevistados afirmaram que uma formação antiracista continuada pode ser um dos caminhos adotados pela companhia. Além disso, 40% dos respondentes acreditam que um programa de letramento racial também é uma ferramenta eficaz.
Medidas efetivas de combate a discriminação racial e ao racismo precisam fazer parte da cultura organizacional da empresa. “Vemos muitas empresas adotando discursos em prol da diversidade, com programas de recrutamento específicos para profissionais negros, mas é preciso ir além, desenvolver ações que possam ser aplicadas e que façam a diferença no dia a dia da empresa”, ressalta Vitor Del Rey.
Metodologia
A pesquisa foi elaborada e conduzida pelo Indee em parceria com o Instituto Guetto, com 245 profissionais negros no Brasil. As entrevistas foram realizadas por meio de um painel on-line em março de 2021.
47%
dos profissionais entrevistados não tem sensação de pertencimento nas empresas em que trabalham
60%
dos profissionais entrevistados já sentiram discriminação racial no ambiente de trabalho
A professora Janaína Andreia Almeida, 44 anos, afirma que um dos fatores que fazem com que os negros se sintam deslocados é a ausência de profissionais pretos e pardos ocupando os cargos de liderança. A identificação não ocorre com outras pessoas e a sensação de pertencimento fica mais difícil ainda de se dar.
“Penso que nós, negros, temos muitas dificuldades de ascensão, justamente por falta de valorização, por, muitas vezes, falta de empoderamento, de pertencimento ao local, falta dos nossos iguais nesses espaços para nos fortalecer”, expõe Janaína. “Não me falta capacitação, não nos falta formação, não nos falta vontade de trabalhar”, diz.
No início da carreira, apesar de gostar do que fazia, segundo o relato da professora, era complicado lidar com as crianças, porque, para elas, uma pessoa negra gerava estranhamento, mas, com o tempo, ela conseguiu conquistar o respeito não só das crianças, mas dos pais e da comunidade escolar.
“É muito difícil que um negro não tenha, em algum momento, no trabalho ou na vida, percebido ou sentido algum tipo de discriminação, de racismo”, constata Janaína.
Ela passou por vários cargos em sua vida profissional: coordenadora pedagógica, diretora de escola, chefe da assessoria especial, assessora especial e secretária executiva da Secretaria de Educação. Mas nenhum deles foi tão desafiador quanto o último. Trabalhar num espaço de tanto poder quanto a Secretaria de Educação ensinou muito à professora.
No começo, Janaína pensou em desistir do convite, mas, por incentivo de outro colegas negros que a admiravam, acabou aceitando. Ela tinha medo de não dar conta e, apesar de aceitar o cargo, começou a duvidar de sua própria capacidade. “Eu comecei a ter síndrome de impostora”, conta.
“Eu achava que o meu conhecimento não era suficiente. E, depois, em conversa com outros colegas, que não estavam no mesmo local que eu, mas também empostos de poder, muitos diziam que se mantiveram porque me viam lá e se fortaleciam com isso”, explica Janaína.
Conforme ela conta, muitas vezes, ia trabalhar de turbante, mas não se sentia confortável. As pessoas diziam que ela devia tomar cuidado. “Elas falavam nossa, mas, como você vai para um evento importante com esse turbante? Você vai ser exonerada pelo governador ou por alguma outra pessoa. Porque fica com outra conotação (o uso do turbante)”, explica a professora.
“Eu engordei muito, em virtude da ansiedade. Fiquei noites sem dormir, não continha a urina, minha glicose ficou alta, eu tive problema de pressão, justamente porque a gente sente essa pressão e sabe que é, em parte, virtude da cor e do fato de ser mulher”, afirma.
Quando era diretora de escola, Janaína dividia a sala com a vice-diretora, que era branca e, por isso, ao procurarem pela responsável pela escola, sempre se dirigiam à vice, achando que aquela era a diretora, e o choque das pessoas ficava visível quando descobriam que uma mulher negra ocupava aquele cargo.
“As pessoas brancas, no trabalho, por mais que digam que irão apoiar o projeto de algum negro, acabam não oferecendo tanto suporte ou não dando muita atenção”, explica.
A assessora regional de ensino de Taguatinga, hoje, se vê em um patamar de igualdade às demais pessoas e profissionais.“Eu sempre busquei o meu espaço, sem me utilizar dessa questão da cor para qualquer situação”, explica. Mas pondera que, para a maioria dos negros, essa igualdade ainda é um gargalo e uma questão a ser enfrentada, não só pelas pessoas pretas e pardas, mas pelas brancas também.
“Eu tive essas dificuldades, mas elas serviram de aprendizagem”., cocconclui e se converteram em fortalecimento”.
“É muito difícil que um negro não tenha em algum momento, no trabalho ou na vida, percebido ou sentido algum tipo de discriminação, de racismo” – Janaína Andreia Almeida, professora
Izabelly Rezende, 23 anos, estudante do 5º semestre de comunicação organizacional da Universidade de Brasília (UnB), conta que já passou por situações discriminatórias no trabalho enquanto fazia estágio. Ela relata que sentiu maior preconceito convivendo em Brasília (DF).
“Eu já desisti de três estágios, e estou acabando de sair de um por conta de racismo; de racismo estrutural para ser mais específica”, observa. A estudante alerta que o racismo estrutural é uma forma de opressão velada. O tratamento a pessoas negras acaba sendo diferente no ambiente de trabalho e isso acaba sendo notável.
Na última situação, decidiu pedir o desligamento após ser atacada com comentários que tentavam rebaixá-la e humilhá-la.
Mudanças necessárias
Izabelly diz que espera encontrar um lugar mais diverso onde possa trabalhar. Ela ressalta que medidas como comitês de diversidade podem ser vias de garantir maior respeito às diferenças. “Eu acho iniciativas geniais, acho que esse é o caminho mais viável em se tratando de uma organização”, afirma.
Segundo o professor da UnB Nelson Fernando Inocêncio, a reação das empresas, aparenta ser aquém do que poderia ser e que há uma certa timidez no que se refere às ações. “Não seria adequado dizer que não houve movimento. Está acontecendo de forma lenta”, diz.
Por um ambiente de trabalho saudável
Para o professor da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros da UnB Nelsn Fernando Inocêncio da Silva, as pressões da sociedade civil, em particular dos movimentos sociais, têm sido muito significativas. Segundo ele, os empregadores estão percebendo que é preciso mudar o padrão de tratamento.
Ele ressalta que não basta empregar negros, mas que os empregados e gerentes precisam passar por formação para entender o que é o racismo. “Muitas vezes você tem uma pessoa que é contratada, mas ela não deixa de sofrer e ser alvo de discriminação dentro da própria intuição onde ela trabalha”, pontua.
“O emprego é fundamental, mas é fundamental também que você tenha um ambiente de trabalho saudável, onde você possa interagir com as pessoas e possa produzir sem ficar com aquele sentimento de estar defensiva, ou em guarda, esperando que aconteçam manifestações discriminatórias”, afirma.
Ele observa que a qualidade do ambiente de trabalho também tem a ver com a relação entre as pessoas. O professor exemplifica que as pessoas que têm cargo de chefia, muitas vezes, cometem assédio moral revestido de conteúdo discriminatório.
FONTE: Correio Braziliense